sábado, 21 de novembro de 2009

Vingança

Em algumas cidades do interior, por falta de atracões turísticas, o vendedor viajante é o principal meio de subsistência dos hotéis e afins. Por ocasião de eventos e festividades tais como Rodeio Internacional de Vacaria, Festa Nacional da Uva, em Caxias do Sul, Fenac, em Novo Hamburgo, Fenarroz, em Cachoeira do Sul, etc., hotéis, pousadas e motéis das cidades sede e cidades vizinhas, são tomados de assalto por visitantes, turistas e participantes. Proprietários e gerentes desses estabelecimentos, em sua maioria, em reconhecimento aa fidelidade de seus habituais clientes, deixam uma “reserva técnica ” de quartos e apartamentos para atende-los nestas ocasiões.
Foi confiando nisso que o Monteiro nem se preocupou em fazer reserva antes de viajar naquela semana. Inexperiente, foi para a estrada tomado de otimismo e certo de que, pelo menos naquele mês, não precisaria se preocupar com a cobertura de suas quotas.
De fato, os colegas que o antecederam naquele setor, asseguraram-lhe que, em anos anteriores, durante as festividades, os objetivos haviam sido alcançados sem dificuldades, com as vendas alavancadas pela demanda de publico e consumidores.
Fez a viagem tranqüilo. Chegando ao destino, dirigiu-se ao hotel de costume. Surpresa! Em frente ao estabelecimento e ao longo de toda a quadra os carros enfileiravam-se. Estacionou distante e nem se preocupou em pegar a bagagem.
“Mando um boy pegar pra mim!”, pensou enquanto, despreocupadamente, dirigia-se aa recepção.
Quando foi informado de que não havia vagas, pediu para falar com o hoteleiro. Inútil. De nada adiantaram seus pedidos. O sujeito, com cara de maus bofes, não se comoveu com sua situação.
“Eu sou cliente da casa, che. Tu não podes me deixar na mão. Olha que nem eu nem mais ninguém da empresa vai se hospedar aqui!” – ameaçou, na esperança de sensibilizar o hospedeiro.
O tiro saiu pela culatra. O homem, conhecido de todos pela sua falta de tato, fechou a cara. Substituiu a ma vontade por grosseria pura.
“Tudo bem. O senhor eh que sabe. Este não eh o único hotel da cidade!” – e deu-lhe as costas, deixando-o a falar sozinho.
Realmente não era o único hotel. Mas era o melhor. E com a melhor comida. E o homem sabia disso. Tanto sabia que não era de tratar muito bem a clientela. E isso já era notório entre os viajantes. Só o Monteiro que não sabia.
Furioso, desceu a escadaria. Encontrou-se com alguns conhecidos e pediu-lhes informações sobre onde poderia passar a noite. Não adiantava procurar. Estava tudo lotado.
Ateh que alguém lembrou da Pensão da Mirita, atras da estação rodoviária.
“Naquela baiuca eu não paro. Ate nem pega bem um vendedor de minha categoria...” - bazofiou o Monteiro, sem terminar a frase, o que deu mais ênfase aa sua indignação.
Mas não teve outro jeito. Depois de perder boa parte da tarde batendo em vão de porta em porta, estacionou resignado em frente a Pensão da Mirita. E foi lá que pernoitou toda a semana.
Ate que não era tão ruim assim quanto falavam. O prédio era feio, antigo e ficava numa rua sem calçamento, beirando o rio. Por ser mais afastado, depois das 21 horas, quando a rodoviária fechava e apagavam-se as luzes, era iluminado apenas pela luz de um poste a sua frente. Não tinha letreiro luminoso, apenas uma velha placa desbotada pelo tempo. Mas era tudo muito limpinho e a comida, apesar de simples e caseira, era deliciosa. E o silencio? Ah, o silencio. Monteiro, naquela noite, dormiu como um anjo.
E amanheceu com o canto dos pássaros que saltitavam na erva a beira do rio.
Depois de um gostoso café da manha, Monteiro saiu para o trabalho quase esquecido da raiva do dia anterior. Mas quando lembrou-se, toda a revolta da véspera voltou.
“Aquele corno me paga. Não precisava ser tão grosso. Eu vou me vingar!”
No mês seguinte, olha o Monteiro retornando aa cidade.
Hospedou-se no hotel como se nada tivesse acontecido, fingindo não notar o sorriso vitorioso do hoteleiro, como a dizer: “Eu sabia que ele ia voltar!”
Trabalhou o dia todo, numa boa, e aa noite recolheu-se sem nada comentar com os amigos que, sabedores do ocorrido, gozavam:
“E daí, cara. O velho te correu daqui e tu volta? Eu não pisava mais aqui!”
No quarto, arrumou as malas e pegou, dentro da pasta, uma barra de chocolate. Tirou o invólucro e pegou o chocolate com a mão nua. Fechou-o entre os dedos deixando que o calor do corpo agisse. O chocolate começou a amolecer e sujar os dedos e a mão. Levantou-se, foi ao banheiro e esfregou os dedos lambuzados no azulejo. O marrom da guloseima sobre a cor clara da porcelana deixava a nítida impressão que alguém havia se limpado após as necessidades fisiológicas e passado os detritos na parede do banheiro. Lavou as mãos e, calmamente, dirigiu-se ao restaurante, no mesmo andar de seu apartamento, propositadamente escolhido. Claro. Ele fazia questão de Ter platéia. Aquela hora já deviam estar todos jantando. Ótimo. Não podia haver melhor ocasião.
Antes de entrar no salão, fez cara de bravo. Franziu o sobrecenho, empurrou a porta com violência e entrou berrando, gritando, certificando-se de que era ouvido por todos.
“Eh uma barbaridade. Um hotel que se diz tão luxuoso, o melhor da região, permitir uma coisa dessas. Onde esta a limpeza? Eh pra isso que nos cobram tão caro? Eu não volto mais aqui. Querem ver? Querem ver?”
E saiu porta fora, já seguido por alguns que, intrigados, queriam saber o que estava havendo. E continuou aos berros, no corredor, enquanto abria a porta do quarto, e entrava, convidando todos a acompanha-lo.
No banheiro apontou para a parede.
“Olha que porcaria. Tudo cagado. Onde esta a camareira? Ela não viu essa barbaridade?
Chama o gerente. Chama o dono!”
E continuou a vociferar ateh que apareceu o dono do hotel seguido de mais gente e alguns funcionários.
Era chegada a hora. Sem interromper a reclamação, passou o dedo no chocolate e, ante o olhar aterrorizado e incrédulo dos que o cercavam, levou-o a boca, lambeu-o e berrou, em alto e bom som:
“E EH MERDA MESMO, GENTE!”
Dois saíram vomitando pelo corredor. Outro vomitou ali mesmo. Todos o olharam com nojo e espanto enquanto ele pegava sua mala e se mandava, porta afora, enquanto o dono do hotel tentava, desesperadamente, explicar-se aos demais.
Desceu as escadas quase não contendo o riso enquanto pensava: “ A vingança eh um prato que se come frio!”
Saiu do hotel, pegou o carro e foi para a Pensão da Mirita.


Verborragia

Ao candidatar-se às vagas de vendedor e promotor de vendas, o Ataíde já entrou de sola. Dirigindo-se ao entrevistador, lascou a pergunta:
“Qual será minha função na “promotoria?”
Para sua própria surpresa, foi selecionado para promotor. No momento de remeter a documentação para a regional da empresa, por ironia do destino, foram trocados os envelopes e ele e outro rapaz, candidato a vendedor , foram admitidos com as funções trocadas. O responsável pelo equívoco, temendo prejudicar-se, calou-se. E assim o Ataíde tornou-se vendedor, completamente despreparado para o cargo.
Tendo estudado pouco e não sendo dado a leituras, ficava maravilhado nas reuniões de treinamento de vendas com a eloqüência exibida pelos palestrantes. Quando ouvia alguma palavra que lhe parecia bonita anotava-a sem, muitas vezes, entender-lhe o significado.
De uma feita, na sala de espera de uma organização, enquanto os demais vendedores queixavam-se de seus superiores, Ataíde derretia-se em elogios ao seu gerente. Exaltava sua fluência verbal, sua cultura geral.
“Seu Schultz é muito inteligente. O homem conhece qualquer assunto. E além disso é troglodita. Fala inglês e alemão!” Os colegas torciam-se de rir, percebendo que ele queria dizer poliglota.
Numa reunião, ao ser indagado dos motivos da queda das vendas de uma determinada praça, expôs seu pressentimento de uma provável falência de seu maior cliente naquela cidade:
“Essa organização está devendo para muitos fornecedores. Está a beira de falecimento.” Durante a visita de um gerente de marketing, ao tomar conhecimento de que este colecionava selos, encontrou a oportunidade de exibir sua suposta erudição:
“É a primeira vez que converso com alguém sifilítico seu Martins!”
Ao que o supervisor, horrorizado, corrigiu furioso:
“FILATÉLICO, Ataíde! FILATÉLICO!!!
Numa roda de amigos, durante o cafezinho, comentava-se a qualidade de um novo produto instantâneo, recém lançado no mercado e o Ataíde saiu-se com esta:
“Eu só gosto de produtos naturais. Lá em casa não usamos nenhum produto expontâneo!”
Em visita a seu setor, o gerente convidou-o a jantar no hotel. Como entrada, foi servido um carpaccio (iguaria feita de finas películas de carne crua, temperada e saboreada com molhos diversos e torradas). Ataíde registrou. Na primeira reunião, em Porto Alegre, diante dos colegas admirados, dirigiu-se ao garçom em alta voz, certificando-se que todos o ouviam:
“Por favor, tem gaspacho?” (sopa de pão, com vários temperos: azeite, vinagre, alho, cebola, tomate, etc).
Só quando o serviram é que percebeu o engano, para divertimento dos amigos.
Em outras ocasiões, demonstrava desconhecer que uma mesma palavra pode ter significado diferente. No início de uma reunião, o gerente saudou-o informalmente:
“E daí Ataíde? Como está a zona?” referindo-se, obviamente, ao setor de sua responsabilidade. A resposta fez todos explodirem na gargalhada:
“Não tenho ido lá seu Schultz, mas dizem que chegaram umas pinguanchas novas de Santa Catarina que são uma beleza!”
Suas gafes já haviam ganhado renome fora de nossas fronteiras. O próprio gerente divertia-se quando as narrava em São Paulo, nas reuniões da Matriz. Graças a essa complacência o Ataíde foi ficando na empresa. Até que um dia, ao despedir-se após mais uma reunião, cometeu o deslize que encerrou sua carreira de vendedor.
Saindo do hotel, com as malas na mão, dirigiu-se ao Sr. Schultz. Este, diante dos visitantes da Matriz, provocou-o esperando uma resposta inusitada e divertida.
“Até breve Ataíde, meu insigne viajante!”
E a resposta veio, em alto e bom tom:
“Até breve, “seu” Schultz, meu insigne ficante!”
E o mercado de trabalho perdeu um vendedor.








Sandálias

Miguel parou a kombi nos fundos do hotel e desligou o motor. Pegou a pasta, fez algumas anotações e dirigiu-se para a recepção. Quando pegou a chave do quarto, o recepcionista avisou-o que havia um recado para ele. Pegou o papel, leu e deixou escapar um palavrão.
“Essa não. Reunião outra vez!”
Não que desaprovasse quando a empresa contratava algum consultor para treinamento da equipe, mas o que irritava eram as demoradas reuniões marcadas pelo gerente, no meio da semana, para comunicar ações ou atividades que poderiam ser transmitidas por escrito ou até por um simples telefonema. Atrapalhava todo o roteiro de trabalho.
Viajaria no dia seguinte. A reunião seria no período da tarde. Não estava muito longe de Porto Alegre. Poderia sair pela manhã, após o café, sem pressa. Teria tempo suficiente para ir ao escritório, acertar alguns assuntos pendentes e ainda almoçar com os colegas de outras áreas. Era o que o reconfortava. A companhia sempre auspiciosa dos amigos, os momentos agradáveis que passavam juntos.
Chegando ao quarto, largou a pasta sobre a pequena mesa e atirou-se na cama. Ficou ali, deitado, suando, de olhos fechados durante alguns instantes, buscando ânimo para iniciar o relatório diário e a soma dos pedidos. Sentou-se, tirou as sandálias...
“Sandálias. Eu estou de sandálias!”
Veio-lhe a mente as inúmeras vezes em que o supervisor e o gerente haviam comentado em reunião que a companhia não permitia o uso de tênis, sandálias, calça de brim ou camiseta no exercício das atividades de campo. A empresa impunha uma boa apresentação à equipe e exigia, inclusive, que todos estivessem sempre bem barbeados. E lá estava ele calçando aquelas prosaicas franciscanas.
Lembrava-se agora. Ganhara-as da esposa , no dia dos pais. Sabia da proibição de tal tipo de calçado em serviço mas tinha um calo incomodando-o e resolveu usá-las por uns dias até melhorar. Assim agradaria a mulher que já andava reclamando que ele não gostava dos presentes que ela lhe dava.
Abriu a mala e procurou entre as roupas bem dobradas, torcendo para que a patroa não tivesse esquecido de colocar um par de sapato extra. Nada encontrando sentou-se na cama e olhou o relógio. Eram quase 19 horas. O comércio local já havia fechado. Teria que comprar sapatos no dia seguinte, antes de viajar.
Levantou-se, naquela manhã, a hora de costume. De nada adiantaria madrugar. O comércio não abriria mais cedo para atende-lo.
Após o café, pagou a conta, pediu ao recepcionista que levasse seus pertences para a kombi e a estacionasse na frente do hotel enquanto iria, a pé, a uma sapataria próxima.
Demorou a encontrar um sapato que lhe agradasse, confortável e com o preço em conta. Agradou-se de um mocassin bastante confortável e elegante, fabricado em Farroupilha. Calçou-os, pagou e saiu rapidamente da loja com as sandálias dentro de uma sacola.
Na frente do hotel, constatou que sua bagagem ainda não estava no veículo e, quase correndo, foi na recepção, pegou a mala e a pasta, deu uma bronca no boy do hotel e, com as mãos ocupadas, parou na frente da caminhonete. Colocou a sacola com as sandálias sobre o teto da kombi, largou a mala no chão e tateou os bolsos procurando as chaves. Estavam com o recepcionista. Largou a pasta com raiva e virou-se para recebe-las do funcionário do hotel que, desculpando-se, se aproximava.
Sentou-se ao volante atirando a bagagem para trás, em cima da carga e arrancou.
Logo estava na estrada, com os vidros abertos, com o vento a bater-lhe no rosto, aliviando-o do calor que já se fazia sentir. Fazia uma manhã quente, incomum naquela época do ano, com um sol abrasador. Anunciava-se um dia infernal. Seria até agradável enfrentá-lo numa sala fresquinha, com ar condicionado. Arrependia-se de haver reclamado da reunião.
A curta viagem transcorreu tranqüila. Seguiu o curso do trafego, sem forçar o veículo, pesado com as diversas caixas de produtos que trazia para pronta entrega. Estava entre Portão e Vila Scharlau quando sentiu que o volante puxava para a direita.
Estacionou no acostamento, desceu e praguejou quando viu o pneu dianteiro direito murcho.
“Era o que faltava. Um pneu furado. E o calor está de f...!” Interrompeu o palavrão quando viu o garoto sentado a margem da estrada, olhando-o interessado.
Abriu a porta do carona, afastou o banco e retirou o pneu sobressalente e o macaco, sempre sob o olhar atento do guri. Colocou as ferramentas no chão e começou a afrouxar os parafusos da roda. Estava nessa tarefa quando o ouviu o garoto perguntar:
“Moço! O que aquela sandália está fazendo em cima da kombi?”
Olhou e viu, presa a canaleta do teto, um dos pés da sandália, seu presente do dia dos pais.
Foi até a traseira, deu alguns passos a volta, olhou a distancia, tentando divisar, ao longo da rodovia algum sinal do outro pé ou da sacola. Nem sinal. Provavelmente caíra quilômetros atrás.
“E agora? Que explicação vou dar a mulher?”
Enraivecido com sua má sorte, desvencilhou o calçado restante da canaleta, rodopiou-o sobre a cabeça e, com um palavrão, atirou-o dentro de uma corrente de água suja, no mato, a alguns metros da estrada. Viu a sandália flutuar e, como um barco furado, pouco a pouco afundar na água poluída.
Quando acabou de trocar o pneu suava em bicas e tinha a camisa ensopada. Teria que ir ao hotel, em Porto Alegre, banhar-se e trocar de roupa antes de ir para o escritório.
Como costumava acontecer, a reunião prolongou-se até a Sexta-feira, não lhe sendo possível concluir o itinerário daquela semana. Teria que retornar aonde estava e recomeçar de onde parara, na 2ª feira seguinte.
Passado o fim de semana, lá estava o Miguel novamente na estrada, retomando o trabalho interrompido. Viajou cedo e por volta das 9 horas hei-lo estacionando no mesmo hotel onde estivera dias atrás. Ao entrar no hall, viu que o recepcionista abaixou-se, apanhou algo sob o balcão e sorridente, quase eufórico, gritou:
“Seu Miguel! Olha o que caiu do teto de sua kombi, quando o senhor arrancou, naquele dia!”
E agitava, feliz, o pé de sandália perdido!

Rap

Seu nome era Willy, mas só o conheciam por Espiga. De seu pai, descendente de alemães, herdou a pele clara e o cabelo muito louro, quase branco. A magreza fazia-o parecer ainda mais alto e comprido. Quando admitido como repositor naquele supermercado em Porto Alegre, o gerente olhou-o e gozou:
“Alemão, tu parece uma espiga de milho!”
Pronto. O apelido pegou.
Desde cedo revelou-se muito trabalhador. Não tinha tarefa que o Espiga não se dispusesse a fazer, sempre com dedicação, sempre procurando fazer o melhor. E foi durante a montagem de uma promoção de fim de ano que um supervisor de uma multinacional botou o olho naquele alemão e resolveu contratá-lo como promotor de vendas.
E não se decepcionou.
Espiga agarrou aquela oportunidade com unhas e dentes. Sabia que, com a pouca instrução que tinha, não podia almejar muito. Trabalho não o assustava. Era criativo, angariava simpatia dos responsáveis pelas lojas onde atuava e logo destacou-se entre seus pares.
Seu sonho era tirar a Carteira de Habilitação e receber um veículo da empresa para viajar. Ambicionava galgar mais um degrau. Queria ser Coordenador de Merchandising, nome pomposo para uma função que pouco exigia além do que já sabia. Mas teria um veículo e uma equipe de promotores sob suas ordens. E daria treinamento aos novatos, recém admitidos.
Nos fins de semana o Espiga reunia-se com amigos da vila onde morava e participava alegremente das “rodas de samba”. Descobriu seus dotes para percussão e, em pouco tempo, fazia parte de um pequeno grupo que animava as festinhas de fim de semana na vila, cantando e tocando samba, pagode e afins. Era de admirar ver aquele alemão, no meio da rapaziada morena, cantando e batucando como se mulato também fosse.
E foi nessa época que o Espiga descobriu o álcool.
As apresentações da banda eram animadas com muita pinga, bebida de fácil acesso para a turma, de talento musical farto e dinheiro escasso. E quem está na chuva, tem que se molhar, diz o ditado. Primeiro foram uns traguinhos, para animar. Com a cabeça a roda, o ritmo e a harmonia afloravam à pele, e seu desempenho na percussão foi melhorando cada vez mais, a ponto de tornar-se indispensável em qualquer show, fosse Sábado ou Domingo à noite.
Depois vieram os “porres”. Terminado o baile, enturmado com os amigos, o Espiga seguia na farra até o amanhecer, esquecido do trabalho, do sonho de promoção e do tão cobiçado automóvel. De vez em quando chegava atrasado ao trabalho nas segundas feiras, quando não faltava na parte da manhã.
As festas de fim de semana começavam cedo, na Quinta feira à noite, e prolongavam-se no início da semana subseqüente. O Espiga começou a beber durante a semana, no almoço, indo, não raro, trabalhar alcoolizado à tarde.
Os colegas agüentavam as pontas, não comentavam nada receando prejudicá-lo. Gostavam muito do alemão e não queriam vê-lo demitido. Um dia, após uma reunião de toda equipe, houve um jantar comemorativo. O Espiga tomou todas e, na hora de ir embora, aproveitou-se do descuido de um colega e tomou a direção de um furgão da empresa. Além de não saber dirigir direito, estava muito bêbado. Deu com a traseira do veículo na porta de um outro carro da empresa, de um dos vendedores do interior.
Na semana seguinte, sem emprego, com a imagem afetada pela ocorrência e pelas constantes bebedeiras, o Espiga era a própria imagem da desolação. Todos se afastavam dele e ninguém atendia a seus pedidos de uma nova oportunidade. Essas coisas se alastram como fogo em capim seco. Todos sabiam que o Espiga já não era o mesmo, que a bebida o estragara.
E nunca mais se soube dele. Diziam que voltara para o interior.
Até que, recentemente, um de seus ex-colegas teve notícias dele.
Realmente voltara a cidade natal onde perambulou de emprego em emprego, sempre demitido por causa da pinga.
Estava trabalhando com uns rapazes que tinham aparelhagem de som e equipavam festas e eventos na cidade. Também tocava percussão em festas nos fins de semana e andava se metendo a compositor, sem nenhum sucesso. E continuava entornando muitos copos.
Soube também que, durante o último carnaval o Espiga havia aprontado mais uma. Trabalhava como motorista (finalmente!) de uma caminhonete, equipada com som que deveria animar a entrada de um baile infantil, numa sociedade recreativa da cidade.
Em determinado momento, quando a música parou, a escadaria do clube apinhada de pais e crianças fantasiadas, o Espiga, cambaleante, pra lá de meia-guampa, de microfone na mão, viu à sua volta um público em potencial. Era uma oportunidade que não podia deixar passar. E berrou:
“Pessoal! Vou improvisar um rap de carnaval. Vocês vão gostar!”
E batia no capô da caminhonete ritmicamente, enquanto, a plenos pulmões, cantava com a voz empastada:
“Eu quero um cacho
Do cabelo do teu cú,
Pra fazer uma peruca
Pro meu pau que anda nú!”
E repetia aos berros o refrão, enquanto pais corriam a tapar os ouvidos de seus pimpolhos, horrorizados. Em instantes a pequena multidão se dissolveu enquanto a brigada, providencialmente, recolhia o Espiga.
Na Quarta feira de cinzas, na praça, outra vez desempregado, o Espiga queixava-se:
“Sacanagem! O Ari Toledo fala um monte de bandalheira na televisão e o povo acha engraçado. Só porque minha composição tinha umas bobagens, me levaram em cana. O pessoal não entende de rap!”.
E sabem? O espiga tinha razão.

Porta Aberta

Ao saber que seria transferido para Porto Alegre, Ivan sentiu-se no Paraíso. A promoção para supervisor de vendas viera de forma inesperada. Era novo na empresa e, apesar de julgar-se apto para a função, sabia existirem colegas mais antigos que ambicionavam o cargo e, ao seu ver, eram mais merecedores. No entanto, não lhe cabia analisar os motivos.
Seu gerente o escolhera e iria se esforçar para corresponder a expectativa.
Sua vida na capital iria mudar muito. Ocuparia uma casa ampla num bairro agradável, perto do colégio das crianças, com ônibus passando na porta. Haveria um parque perto onde, nos fins de semana, levaria os filhos para jogar bola, brincar e andar de bicicleta. Poderia exercitar-se também, caminhando de 45 a 60 minutos por dia, para não perder a forma.
Ana, a esposa, estava feliz. Deixaria em Santo Ângelo os familiares e, nos primeiros dias, reclamaria um pouco mas, na medida em que conhecesse os vizinhos, se acostumaria com a distância. Ocupar-se-ia com a decoração da casa, que lhe pareceria enorme com os poucos móveis que trariam na mudança. Compraria tudo novo. A promoção do marido enchia-a de orgulho. Logo esqueceria os primeiros anos do casamento, com tantas dificuldades e sacrifícios.
Todos esses pensamentos passavam pela cabeça de Ivan enquanto seu carro deslizava na BR 116, já em Canoas, quase chegando em Porto Alegre, naquela manhã de inverno. Estava úmido, chovia e os vidros do carro, embaçados, dificultavam a visão, fazendo-o dirigir com cuidado.
Apesar do dia feio, sentia-se feliz. Tudo corria as mil maravilhas e nada havia que pudesse deixá-lo de mal humor. Nem mesmo o trânsito complicado que, com a chuva, tornava-se caótico. Diziam seus amigos que o motorista da capital era apressado, nervoso e mal educado. Notara, em outras viagens à capital que, mal abria o sinal, os motoristas logo atrás já buzinavam nervosamente, mas achava isso natural. Era uma cidade agitada, cheia de pessoas responsáveis, homens de negócio, trabalhadores, todos com pressa e cheios de afazeres. Por isso eram apressados. Não achava essa atitude um sinal de falta de educação.
Sentia-se, ele sim, não adaptado aquela azáfama toda, sendo ele o estranho, com sua calma ao dirigir, que atrapalhava aos demais.
Estava absorto nesses pensamentos quando percebeu que o carro a sua frente estava com a porta do motorista mal fechada e dela pendia o cinto de segurança que arrastava-se no asfalto molhado. Manteve-se na faixa de rolamento da esquerda e aproximou-se, esperando uma chance de avisar ao motorista. Já na Avenida dos Estados, um semáforo passou para o amarelo, sinal de que teria que parar em seguida. Era a oportunidade que esperava.
Não conseguiu ficar ao lado do carro e esperou que o fluxo de tráfego reiniciasse para tentar se fazer notar pelo descuidado motorista. Assim um cidadão consciente devia se portar. Alertar aos desavisados e perceber, no olhar agradecido do outro, o reconhecimento. Afinal estava em Porto Alegre, aquela cidade que iria aprender a amar como ao seu próprio torrão natal.
O sinal abriu. O carro a sua frente arrancou. Emparelhou com o veículo à sua direita, diminuiu a velocidade, baixou o vidro e buzinou. O sujeito ao lado não estava nem aí. Buzinou de novo. O motorista olhou sério para ele sem entender. Tentou fazer-se compreender fazendo sinais. Não podia ficar muito tempo retendo o tráfego. Os motoristas atrás de si começavam a buzinar, impacientes, quando o vidro do carro ao seu lado começou a baixar. Aumentando a velocidade gritou: “Porta aberta!” e distanciou-se. Tentou ver pelo retrovisor se o outro entendera mas o vidro embaçado impediu-o. Voltou aos seus pensamentos.
Seria feliz em Porto Alegre. Via, no seu gesto, a atitude que se podia esperar de alguém integrado ao seu meio, de alguém em harmonia com a grande cidade.
O trânsito continuava lento e, na sinaleira seguinte, teve que parar novamente. Com o canto do olho percebeu que um carro parara ao seu lado. Virou-se e viu que o motorista a quem avisara a poucos instantes fazia-lhe sinais. Abriu o vidro com um sorriso nos lábios já escolhendo as palavras que diria em resposta ao agradecimento.
Um rosto irado olhava-o e o berro pegou-o de surpresa.
“BOCA ABERTA é a mãe filho da puta!”
Aturdido Ivan fitava-o sem entender. Ficou parado, vendo-o arrancar cantando pneus, sem perceber que o sinal já abrira. Atrás dele, as buzinas soavam ensurdecedoras. E no meio do barulho todo conseguiu ouvir, atônito:
“Sai da frente panaca!”; “Tá esperando o quê boiola?”; “Te mexe ô colono!”
A cidade grande lhe dava as boas vindas.


Ponto e Vírgula

Um tipo bonito, bem apanhado, com uma certa fluência verbal, tem boas condições de se dar bem e prosperar na carreira de vendas. Se agregar a esses dons naturais, conhecimentos sólidos de seu produto, informações sobre o mercado em que atua, certamente se sairá a contento.
Para o Celso certamente foi mais difícil. Baixinho, além de ser gordinho e roliço, tinha um defeito físico, seqüela da poliomielite na infância. Caminhava de forma estranha, firmando-se sobre a perna sã e atirando a outra para a frente, que fazia um trajeto similar a uma meia lua. Tinha que apoiar o braço na coxa fina da perna doente, curvando-se para o lado, antes de dar um novo passo.
Junte-se a isso, a calvície prematura e os cabelos mais longos de um lado, cuidadosamente penteados para o alto, fixados com muito gel, na vã tentativa de esconder a careca.
No entanto, dono de uma personalidade forte e de uma férrea vontade de vencer, abraçou a profissão de vendedor. Sem qualquer resquício de complexo por sua deficiência, era um sujeito alegre, bonachão, sempre sorridente. Na empresa em que trabalhava era tido como um dos melhores vendedores e ninguém duvidava de sua competência profissional.
Fora do expediente era um gozador. Adorava tirar sarro dos outros embora, com seu problema físico, fosse um alvo fácil para as piadas dos amigos.
O apelido surgiu não se sabe de onde. Um dia alguém brindou-o com aquela alcunha que agregou-se ao seu nome: Ponto e Vírgula, numa direta alusão ao seu andar manquitolante.
Ele mesmo riu muito do apelido. E chegou ao cúmulo de deixar recados para os clientes com a assinatura: Celso “Ponto e Vírgula”. Não dava a mínima.
Não se considerava um deficiente físico. Trabalhava, estudava, levava uma vida normal.
Não era dependente de ninguém.
Tinha um sonho. Conseguir comprar um carro automático, que lhe permitisse dirigir. Nos veículos comuns isso não era possível. A perna defeituosa não obedecia e, dificilmente, seria aprovado no exame. Mas isso só lhe servia de estímulo para lutar ainda mais. E se dedicava cada vez mais ao trabalho e aos estudos.
Todos acharam que estava maluco quando, uma vez, ao sair de férias, comprou uma prancha de surfe. E lá se foi para o litoral. E tanto insistiu e tentou que, depois de muitos tombos e de engolir muita água salgada, conseguiu, finalmente, equilibrar-se sobre a prancha e surfar. Todos os dias, cedo da manhã, lá estava ele a beira-mar, com a prancha a tiracolo, bronzeado como um “menino do Rio”. Ficava engraçado com aquelas enormes bermudas de surfista. Como era muito simpático e comunicativo logo enturmou-se com a rapaziada. Um figuraço.
Voltou das férias bronzeado e com um monte de fotografias para mostrar aos amigos suas proezas. A turma gozou quando viu suas poses, na areia, com a prancha de surf, mas calou-se boquiaberta ao ver as imagens que o mostravam cavalgando as ondas, com a habilidade de um surfista profissional. E passou a admirá-lo e respeitá-lo ainda mais.
Certa vez recebeu a incumbência de visitar um novo cliente. Estudou o caso, preparou cuidadosamente um port-folio e para lá se dirigiu. Depois de esperar numa ante-sala foi atendido pelo comprador. A entrevista decorreu normalmente. Como havia estudado antecipadamente as necessidades do cliente, encerrou a conversa com o negócio praticamente fechado, restando apenas alguns detalhes finais a acertar. Despediu-se e rumou para o elevador. Depois de esperar muito, foi avisado por uma funcionária que o elevador havia enguiçado e que deveria usar a escada.
“Menos mal que é descida. Pra baixo todo santo ajuda!” – pensou.
Começou a descer com cuidado. A escada estava movimentada, muita gente subindo e descendo, todos apressados.
Celso mantinha um braço apoiado ao corrimão enquanto o outro sobraçava o pesado port-folio e carregava a pasta. E descia lentamente, atrapalhando os demais que, alheios a sua dificuldade, subiam e desciam.
De repente alguém esbarrou nele. Desequilibrou-se, tentou firmar-se sobre a perna deficiente inutilmente. Rolou escada abaixo, levando de roldão algumas pessoas que tentavam ajudá-lo. E estatelou-se lá embaixo, no hall de entrada do prédio, a pasta e o port-folio abertos, espalhando papéis pelo chão, que eram pisoteados pelos que passavam.
De quatro, juntou os papéis, auxiliado por algumas pessoas que, solícitas, o ajudaram a erguer-se. Recomposto, encarou os muitos rostos a sua volta, colocou os documentos sob o braço, tomou a pasta nas mãos, olhou com cara de bravo os curiosos que riam de sua triste situação e vociferou:
“Que é que foi? Que é que estão olhando? Cada um desce como quer!”
Encheu o peito e saiu mancando, cheio de razão, como se nada tivesse acontecido.
É. O “Ponto e Vírgula” era um figuraço.

Pescaria

João Batista era o único da turma que não gostava de pescaria. Mas os amigos tanto insistiram que ele resolveu ir junto. Saíram cedinho de Porto Alegre em direção a Lajeado e, perto da entrada para Taquari, saíram da rodovia e pegaram uma estradinha de terra. Minutos depois estavam às margens de um riozinho de água avermelhada mas muito calma.
Pararam a kombi sob uma árvore frondosa, tiraram toda a tralha e espalharam em volta do que seria o “acampamento”.
Enquanto os amigos iam para o rio com caniços, iscas, anzóis e demais apetrechos de pesca, o Batista pegou um jornal e acomodou-se no banco traseiro da kombi, antegozando o dia tranqüilo que teria. Mexendo nos bolsos percebeu haver esquecido os óculos. Teria que se contentar com as manchetes. Não conseguia ler as letras menores. Mas o dia estava agradável, fresquinho como costumam ser as manhãs de primavera e, em poucos instantes, o Batista dormitava, embalado pelo canto dos pássaros, pelo murmurejar das águas do rio. De vez em quando despertava com as vozes dos pescadores para, logo sem seguida, voltar a cochilar.
Quando o sol já ia alto , começou a esquentar dentro da kombi, fazendo-o acordar suado e com sede. Ouviu distante as vozes dos amigos e resolveu surpreende-los. Sem precisar procurar muito, encontrou a garrafa de pinga, limões e, em poucos instantes, tinha pronta uma enorme caneca de caipira, preparada no capricho. Só faltava o açúcar. E após procurar cuidadosamente em todas as sacolas constatou que havia esquecido. E agora? Não podia permitir que esse detalhe estragasse aquele dia que se configurava maravilhoso. Os amigos não o perdoariam. Afinal ele ficara encarregado das bebidas e refrigerantes. Trouxera pinga vinho, cerveja, gelo. Como pudera esquecer o açúcar? Logo ele que não sabia fazer nada numa pescaria. Não tinha nenhum dote culinário, não tinha paciência para pescar e morria de nojo de limpar peixe. Após estarem fritinhos e servidos no prato, acompanhados de um arroz soltinho e com uma cerveja bem gelada , eram irresistíveis . Porém não suportava a idéia de tocá-los vivos, menos ainda abri-los com uma faca, limpá-los... Nem pensar! E deixara claro aos amigos que por isso não gostava de pescaria. Mas convenceram-no desde que ele ficasse responsável pelo “trago”. Agradava-o passar algumas horas com a turma. Eram todos bons amigos e pertenciam a mesma equipe. Tinha que descobrir algo para adoçar a caipira.
Lembrou-se que na última reunião percebera que o Américo, um dos colegas, trazia na pasta uns pequenos comprimidos num potinho. Ficou sabendo ser sacarina que o amigo usava no cafezinho para substituir o açúcar pois estava de regime. Por uma feliz coincidência, tinham vindo ao passeio exatamente na kombi do Américo que, cuidadoso como era, certamente não teria esquecido seu potinho de sacarina. Deveria estar no porta –luvas. Tão logo abriu a pequena porta no painel do veículo divisou o minúsculo pote. Parecia um pouco menor do que aquele que vira na pasta do colega. O rótulo estava gasto e, sem os óculos, era-lhe difícil identificar o conteúdo mas, ao abrir o recipiente, percebeu que os pequenos comprimidos em forma de bolinhas eram idênticos ao que o amigo usara para adoçar o café. Pegou alguns e colocou na caipira. Experimentou! Perfeito! Nem muito doce, nem muito azedo. Uma delícia!
Dirigiu-se ao rio e foi recebido com uma ovação. Todos sorveram a caipirinha e não pouparam elogios.
“Ô Batista! Tá uma delícia! Pena que foi pouco!”
Realmente o primeiro caneco fora consumido em instantes. Mas o Batista prontamente o substituiu com um segundo e um terceiro, igualmente geladinhos e deliciosos.
Ao meio dia todos se fartaram com uma bela fritada de peixe, preparada de forma esmerada pelo Denis, um colega recém admitido que gabava-se de ser insuperável na cozinha. O que ficou comprovado por todos que o elegeram, a partir de então, como mestre-cuca de pescarias futuras.
A tarde passou rapidamente. O rio era bastante piscoso e todos levariam uma boa quantidade de pescado para casa, para alegria dos familiares.
Por volta das 5 da tarde todos estavam prontos com tudo arrumado para o retorno. Havia sido um dia e tanto. Partiram todos alegres, prometendo-se uma nova excursão dentro em breve.
Mal haviam percorrido alguns metros o Américo parou a kombi.
“O que houve Américo?” perguntaram.
“Espera um pouco turma. Preciso ir no mato. Tô apertado!” E saltou do veículo apressadamente, adentrando ao mato até perder-se de vista. Após alguns minutos voltou, queixando-se de estar com muita cólica. Mal sentou-se na direção e foi a vez do Denis.
“Nem liga o carro Américo que eu também tô com dor de barriga!” E atirou-se porta afora, embarafustando-se nos arbustos à margem da estrada. E antes do Denis retornar foi a vez do Batista. E nem bem reiniciaram a viagem, novos gritos aflitos pediam que parassem a kombi e, um a um, corriam para o mato sob o pretexto de que estavam “apertados”.
Interrogavam-se: “O que aconteceu? O que foi que nos fez mal?” E a cada parada, enquanto esperavam o que estava no mato se aliviando, questionavam-se sobre o que os afetara daquela forma.
Até que um deles perguntou: “Batista, o que você pôs na caipira?”
“Sacarina que o Américo usa para adoçar café. Encontrei um potinho no porta luvas!”
“Eu não trouxe a sacarina. Cadê o potinho?” indagou o Américo que, tomando o recipiente das mãos do Batista gritou indignado:
“Filho da puta! Isso é purgante que minha sogra esqueceu lá em casa. Eu ia passar na casa dela hoje para entregar pois ela sofre de prisão de ventre!”
E foram tantas as paradas na volta que levaram quase 5 horas para chegar em Porto Alegre.
E no dia seguinte, uma grande multinacional não teve uma só caixa de seus produtos vendida na Grande Porto Alegre. Toda equipe de vendedores estava impossibilitada de trabalhar por uma caganeira incontrolável.