sábado, 21 de novembro de 2009

Vingança

Em algumas cidades do interior, por falta de atracões turísticas, o vendedor viajante é o principal meio de subsistência dos hotéis e afins. Por ocasião de eventos e festividades tais como Rodeio Internacional de Vacaria, Festa Nacional da Uva, em Caxias do Sul, Fenac, em Novo Hamburgo, Fenarroz, em Cachoeira do Sul, etc., hotéis, pousadas e motéis das cidades sede e cidades vizinhas, são tomados de assalto por visitantes, turistas e participantes. Proprietários e gerentes desses estabelecimentos, em sua maioria, em reconhecimento aa fidelidade de seus habituais clientes, deixam uma “reserva técnica ” de quartos e apartamentos para atende-los nestas ocasiões.
Foi confiando nisso que o Monteiro nem se preocupou em fazer reserva antes de viajar naquela semana. Inexperiente, foi para a estrada tomado de otimismo e certo de que, pelo menos naquele mês, não precisaria se preocupar com a cobertura de suas quotas.
De fato, os colegas que o antecederam naquele setor, asseguraram-lhe que, em anos anteriores, durante as festividades, os objetivos haviam sido alcançados sem dificuldades, com as vendas alavancadas pela demanda de publico e consumidores.
Fez a viagem tranqüilo. Chegando ao destino, dirigiu-se ao hotel de costume. Surpresa! Em frente ao estabelecimento e ao longo de toda a quadra os carros enfileiravam-se. Estacionou distante e nem se preocupou em pegar a bagagem.
“Mando um boy pegar pra mim!”, pensou enquanto, despreocupadamente, dirigia-se aa recepção.
Quando foi informado de que não havia vagas, pediu para falar com o hoteleiro. Inútil. De nada adiantaram seus pedidos. O sujeito, com cara de maus bofes, não se comoveu com sua situação.
“Eu sou cliente da casa, che. Tu não podes me deixar na mão. Olha que nem eu nem mais ninguém da empresa vai se hospedar aqui!” – ameaçou, na esperança de sensibilizar o hospedeiro.
O tiro saiu pela culatra. O homem, conhecido de todos pela sua falta de tato, fechou a cara. Substituiu a ma vontade por grosseria pura.
“Tudo bem. O senhor eh que sabe. Este não eh o único hotel da cidade!” – e deu-lhe as costas, deixando-o a falar sozinho.
Realmente não era o único hotel. Mas era o melhor. E com a melhor comida. E o homem sabia disso. Tanto sabia que não era de tratar muito bem a clientela. E isso já era notório entre os viajantes. Só o Monteiro que não sabia.
Furioso, desceu a escadaria. Encontrou-se com alguns conhecidos e pediu-lhes informações sobre onde poderia passar a noite. Não adiantava procurar. Estava tudo lotado.
Ateh que alguém lembrou da Pensão da Mirita, atras da estação rodoviária.
“Naquela baiuca eu não paro. Ate nem pega bem um vendedor de minha categoria...” - bazofiou o Monteiro, sem terminar a frase, o que deu mais ênfase aa sua indignação.
Mas não teve outro jeito. Depois de perder boa parte da tarde batendo em vão de porta em porta, estacionou resignado em frente a Pensão da Mirita. E foi lá que pernoitou toda a semana.
Ate que não era tão ruim assim quanto falavam. O prédio era feio, antigo e ficava numa rua sem calçamento, beirando o rio. Por ser mais afastado, depois das 21 horas, quando a rodoviária fechava e apagavam-se as luzes, era iluminado apenas pela luz de um poste a sua frente. Não tinha letreiro luminoso, apenas uma velha placa desbotada pelo tempo. Mas era tudo muito limpinho e a comida, apesar de simples e caseira, era deliciosa. E o silencio? Ah, o silencio. Monteiro, naquela noite, dormiu como um anjo.
E amanheceu com o canto dos pássaros que saltitavam na erva a beira do rio.
Depois de um gostoso café da manha, Monteiro saiu para o trabalho quase esquecido da raiva do dia anterior. Mas quando lembrou-se, toda a revolta da véspera voltou.
“Aquele corno me paga. Não precisava ser tão grosso. Eu vou me vingar!”
No mês seguinte, olha o Monteiro retornando aa cidade.
Hospedou-se no hotel como se nada tivesse acontecido, fingindo não notar o sorriso vitorioso do hoteleiro, como a dizer: “Eu sabia que ele ia voltar!”
Trabalhou o dia todo, numa boa, e aa noite recolheu-se sem nada comentar com os amigos que, sabedores do ocorrido, gozavam:
“E daí, cara. O velho te correu daqui e tu volta? Eu não pisava mais aqui!”
No quarto, arrumou as malas e pegou, dentro da pasta, uma barra de chocolate. Tirou o invólucro e pegou o chocolate com a mão nua. Fechou-o entre os dedos deixando que o calor do corpo agisse. O chocolate começou a amolecer e sujar os dedos e a mão. Levantou-se, foi ao banheiro e esfregou os dedos lambuzados no azulejo. O marrom da guloseima sobre a cor clara da porcelana deixava a nítida impressão que alguém havia se limpado após as necessidades fisiológicas e passado os detritos na parede do banheiro. Lavou as mãos e, calmamente, dirigiu-se ao restaurante, no mesmo andar de seu apartamento, propositadamente escolhido. Claro. Ele fazia questão de Ter platéia. Aquela hora já deviam estar todos jantando. Ótimo. Não podia haver melhor ocasião.
Antes de entrar no salão, fez cara de bravo. Franziu o sobrecenho, empurrou a porta com violência e entrou berrando, gritando, certificando-se de que era ouvido por todos.
“Eh uma barbaridade. Um hotel que se diz tão luxuoso, o melhor da região, permitir uma coisa dessas. Onde esta a limpeza? Eh pra isso que nos cobram tão caro? Eu não volto mais aqui. Querem ver? Querem ver?”
E saiu porta fora, já seguido por alguns que, intrigados, queriam saber o que estava havendo. E continuou aos berros, no corredor, enquanto abria a porta do quarto, e entrava, convidando todos a acompanha-lo.
No banheiro apontou para a parede.
“Olha que porcaria. Tudo cagado. Onde esta a camareira? Ela não viu essa barbaridade?
Chama o gerente. Chama o dono!”
E continuou a vociferar ateh que apareceu o dono do hotel seguido de mais gente e alguns funcionários.
Era chegada a hora. Sem interromper a reclamação, passou o dedo no chocolate e, ante o olhar aterrorizado e incrédulo dos que o cercavam, levou-o a boca, lambeu-o e berrou, em alto e bom som:
“E EH MERDA MESMO, GENTE!”
Dois saíram vomitando pelo corredor. Outro vomitou ali mesmo. Todos o olharam com nojo e espanto enquanto ele pegava sua mala e se mandava, porta afora, enquanto o dono do hotel tentava, desesperadamente, explicar-se aos demais.
Desceu as escadas quase não contendo o riso enquanto pensava: “ A vingança eh um prato que se come frio!”
Saiu do hotel, pegou o carro e foi para a Pensão da Mirita.


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