sábado, 21 de novembro de 2009

Sandálias

Miguel parou a kombi nos fundos do hotel e desligou o motor. Pegou a pasta, fez algumas anotações e dirigiu-se para a recepção. Quando pegou a chave do quarto, o recepcionista avisou-o que havia um recado para ele. Pegou o papel, leu e deixou escapar um palavrão.
“Essa não. Reunião outra vez!”
Não que desaprovasse quando a empresa contratava algum consultor para treinamento da equipe, mas o que irritava eram as demoradas reuniões marcadas pelo gerente, no meio da semana, para comunicar ações ou atividades que poderiam ser transmitidas por escrito ou até por um simples telefonema. Atrapalhava todo o roteiro de trabalho.
Viajaria no dia seguinte. A reunião seria no período da tarde. Não estava muito longe de Porto Alegre. Poderia sair pela manhã, após o café, sem pressa. Teria tempo suficiente para ir ao escritório, acertar alguns assuntos pendentes e ainda almoçar com os colegas de outras áreas. Era o que o reconfortava. A companhia sempre auspiciosa dos amigos, os momentos agradáveis que passavam juntos.
Chegando ao quarto, largou a pasta sobre a pequena mesa e atirou-se na cama. Ficou ali, deitado, suando, de olhos fechados durante alguns instantes, buscando ânimo para iniciar o relatório diário e a soma dos pedidos. Sentou-se, tirou as sandálias...
“Sandálias. Eu estou de sandálias!”
Veio-lhe a mente as inúmeras vezes em que o supervisor e o gerente haviam comentado em reunião que a companhia não permitia o uso de tênis, sandálias, calça de brim ou camiseta no exercício das atividades de campo. A empresa impunha uma boa apresentação à equipe e exigia, inclusive, que todos estivessem sempre bem barbeados. E lá estava ele calçando aquelas prosaicas franciscanas.
Lembrava-se agora. Ganhara-as da esposa , no dia dos pais. Sabia da proibição de tal tipo de calçado em serviço mas tinha um calo incomodando-o e resolveu usá-las por uns dias até melhorar. Assim agradaria a mulher que já andava reclamando que ele não gostava dos presentes que ela lhe dava.
Abriu a mala e procurou entre as roupas bem dobradas, torcendo para que a patroa não tivesse esquecido de colocar um par de sapato extra. Nada encontrando sentou-se na cama e olhou o relógio. Eram quase 19 horas. O comércio local já havia fechado. Teria que comprar sapatos no dia seguinte, antes de viajar.
Levantou-se, naquela manhã, a hora de costume. De nada adiantaria madrugar. O comércio não abriria mais cedo para atende-lo.
Após o café, pagou a conta, pediu ao recepcionista que levasse seus pertences para a kombi e a estacionasse na frente do hotel enquanto iria, a pé, a uma sapataria próxima.
Demorou a encontrar um sapato que lhe agradasse, confortável e com o preço em conta. Agradou-se de um mocassin bastante confortável e elegante, fabricado em Farroupilha. Calçou-os, pagou e saiu rapidamente da loja com as sandálias dentro de uma sacola.
Na frente do hotel, constatou que sua bagagem ainda não estava no veículo e, quase correndo, foi na recepção, pegou a mala e a pasta, deu uma bronca no boy do hotel e, com as mãos ocupadas, parou na frente da caminhonete. Colocou a sacola com as sandálias sobre o teto da kombi, largou a mala no chão e tateou os bolsos procurando as chaves. Estavam com o recepcionista. Largou a pasta com raiva e virou-se para recebe-las do funcionário do hotel que, desculpando-se, se aproximava.
Sentou-se ao volante atirando a bagagem para trás, em cima da carga e arrancou.
Logo estava na estrada, com os vidros abertos, com o vento a bater-lhe no rosto, aliviando-o do calor que já se fazia sentir. Fazia uma manhã quente, incomum naquela época do ano, com um sol abrasador. Anunciava-se um dia infernal. Seria até agradável enfrentá-lo numa sala fresquinha, com ar condicionado. Arrependia-se de haver reclamado da reunião.
A curta viagem transcorreu tranqüila. Seguiu o curso do trafego, sem forçar o veículo, pesado com as diversas caixas de produtos que trazia para pronta entrega. Estava entre Portão e Vila Scharlau quando sentiu que o volante puxava para a direita.
Estacionou no acostamento, desceu e praguejou quando viu o pneu dianteiro direito murcho.
“Era o que faltava. Um pneu furado. E o calor está de f...!” Interrompeu o palavrão quando viu o garoto sentado a margem da estrada, olhando-o interessado.
Abriu a porta do carona, afastou o banco e retirou o pneu sobressalente e o macaco, sempre sob o olhar atento do guri. Colocou as ferramentas no chão e começou a afrouxar os parafusos da roda. Estava nessa tarefa quando o ouviu o garoto perguntar:
“Moço! O que aquela sandália está fazendo em cima da kombi?”
Olhou e viu, presa a canaleta do teto, um dos pés da sandália, seu presente do dia dos pais.
Foi até a traseira, deu alguns passos a volta, olhou a distancia, tentando divisar, ao longo da rodovia algum sinal do outro pé ou da sacola. Nem sinal. Provavelmente caíra quilômetros atrás.
“E agora? Que explicação vou dar a mulher?”
Enraivecido com sua má sorte, desvencilhou o calçado restante da canaleta, rodopiou-o sobre a cabeça e, com um palavrão, atirou-o dentro de uma corrente de água suja, no mato, a alguns metros da estrada. Viu a sandália flutuar e, como um barco furado, pouco a pouco afundar na água poluída.
Quando acabou de trocar o pneu suava em bicas e tinha a camisa ensopada. Teria que ir ao hotel, em Porto Alegre, banhar-se e trocar de roupa antes de ir para o escritório.
Como costumava acontecer, a reunião prolongou-se até a Sexta-feira, não lhe sendo possível concluir o itinerário daquela semana. Teria que retornar aonde estava e recomeçar de onde parara, na 2ª feira seguinte.
Passado o fim de semana, lá estava o Miguel novamente na estrada, retomando o trabalho interrompido. Viajou cedo e por volta das 9 horas hei-lo estacionando no mesmo hotel onde estivera dias atrás. Ao entrar no hall, viu que o recepcionista abaixou-se, apanhou algo sob o balcão e sorridente, quase eufórico, gritou:
“Seu Miguel! Olha o que caiu do teto de sua kombi, quando o senhor arrancou, naquele dia!”
E agitava, feliz, o pé de sandália perdido!

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