sábado, 21 de novembro de 2009

Rap

Seu nome era Willy, mas só o conheciam por Espiga. De seu pai, descendente de alemães, herdou a pele clara e o cabelo muito louro, quase branco. A magreza fazia-o parecer ainda mais alto e comprido. Quando admitido como repositor naquele supermercado em Porto Alegre, o gerente olhou-o e gozou:
“Alemão, tu parece uma espiga de milho!”
Pronto. O apelido pegou.
Desde cedo revelou-se muito trabalhador. Não tinha tarefa que o Espiga não se dispusesse a fazer, sempre com dedicação, sempre procurando fazer o melhor. E foi durante a montagem de uma promoção de fim de ano que um supervisor de uma multinacional botou o olho naquele alemão e resolveu contratá-lo como promotor de vendas.
E não se decepcionou.
Espiga agarrou aquela oportunidade com unhas e dentes. Sabia que, com a pouca instrução que tinha, não podia almejar muito. Trabalho não o assustava. Era criativo, angariava simpatia dos responsáveis pelas lojas onde atuava e logo destacou-se entre seus pares.
Seu sonho era tirar a Carteira de Habilitação e receber um veículo da empresa para viajar. Ambicionava galgar mais um degrau. Queria ser Coordenador de Merchandising, nome pomposo para uma função que pouco exigia além do que já sabia. Mas teria um veículo e uma equipe de promotores sob suas ordens. E daria treinamento aos novatos, recém admitidos.
Nos fins de semana o Espiga reunia-se com amigos da vila onde morava e participava alegremente das “rodas de samba”. Descobriu seus dotes para percussão e, em pouco tempo, fazia parte de um pequeno grupo que animava as festinhas de fim de semana na vila, cantando e tocando samba, pagode e afins. Era de admirar ver aquele alemão, no meio da rapaziada morena, cantando e batucando como se mulato também fosse.
E foi nessa época que o Espiga descobriu o álcool.
As apresentações da banda eram animadas com muita pinga, bebida de fácil acesso para a turma, de talento musical farto e dinheiro escasso. E quem está na chuva, tem que se molhar, diz o ditado. Primeiro foram uns traguinhos, para animar. Com a cabeça a roda, o ritmo e a harmonia afloravam à pele, e seu desempenho na percussão foi melhorando cada vez mais, a ponto de tornar-se indispensável em qualquer show, fosse Sábado ou Domingo à noite.
Depois vieram os “porres”. Terminado o baile, enturmado com os amigos, o Espiga seguia na farra até o amanhecer, esquecido do trabalho, do sonho de promoção e do tão cobiçado automóvel. De vez em quando chegava atrasado ao trabalho nas segundas feiras, quando não faltava na parte da manhã.
As festas de fim de semana começavam cedo, na Quinta feira à noite, e prolongavam-se no início da semana subseqüente. O Espiga começou a beber durante a semana, no almoço, indo, não raro, trabalhar alcoolizado à tarde.
Os colegas agüentavam as pontas, não comentavam nada receando prejudicá-lo. Gostavam muito do alemão e não queriam vê-lo demitido. Um dia, após uma reunião de toda equipe, houve um jantar comemorativo. O Espiga tomou todas e, na hora de ir embora, aproveitou-se do descuido de um colega e tomou a direção de um furgão da empresa. Além de não saber dirigir direito, estava muito bêbado. Deu com a traseira do veículo na porta de um outro carro da empresa, de um dos vendedores do interior.
Na semana seguinte, sem emprego, com a imagem afetada pela ocorrência e pelas constantes bebedeiras, o Espiga era a própria imagem da desolação. Todos se afastavam dele e ninguém atendia a seus pedidos de uma nova oportunidade. Essas coisas se alastram como fogo em capim seco. Todos sabiam que o Espiga já não era o mesmo, que a bebida o estragara.
E nunca mais se soube dele. Diziam que voltara para o interior.
Até que, recentemente, um de seus ex-colegas teve notícias dele.
Realmente voltara a cidade natal onde perambulou de emprego em emprego, sempre demitido por causa da pinga.
Estava trabalhando com uns rapazes que tinham aparelhagem de som e equipavam festas e eventos na cidade. Também tocava percussão em festas nos fins de semana e andava se metendo a compositor, sem nenhum sucesso. E continuava entornando muitos copos.
Soube também que, durante o último carnaval o Espiga havia aprontado mais uma. Trabalhava como motorista (finalmente!) de uma caminhonete, equipada com som que deveria animar a entrada de um baile infantil, numa sociedade recreativa da cidade.
Em determinado momento, quando a música parou, a escadaria do clube apinhada de pais e crianças fantasiadas, o Espiga, cambaleante, pra lá de meia-guampa, de microfone na mão, viu à sua volta um público em potencial. Era uma oportunidade que não podia deixar passar. E berrou:
“Pessoal! Vou improvisar um rap de carnaval. Vocês vão gostar!”
E batia no capô da caminhonete ritmicamente, enquanto, a plenos pulmões, cantava com a voz empastada:
“Eu quero um cacho
Do cabelo do teu cú,
Pra fazer uma peruca
Pro meu pau que anda nú!”
E repetia aos berros o refrão, enquanto pais corriam a tapar os ouvidos de seus pimpolhos, horrorizados. Em instantes a pequena multidão se dissolveu enquanto a brigada, providencialmente, recolhia o Espiga.
Na Quarta feira de cinzas, na praça, outra vez desempregado, o Espiga queixava-se:
“Sacanagem! O Ari Toledo fala um monte de bandalheira na televisão e o povo acha engraçado. Só porque minha composição tinha umas bobagens, me levaram em cana. O pessoal não entende de rap!”.
E sabem? O espiga tinha razão.

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