sábado, 21 de novembro de 2009

Porta Aberta

Ao saber que seria transferido para Porto Alegre, Ivan sentiu-se no Paraíso. A promoção para supervisor de vendas viera de forma inesperada. Era novo na empresa e, apesar de julgar-se apto para a função, sabia existirem colegas mais antigos que ambicionavam o cargo e, ao seu ver, eram mais merecedores. No entanto, não lhe cabia analisar os motivos.
Seu gerente o escolhera e iria se esforçar para corresponder a expectativa.
Sua vida na capital iria mudar muito. Ocuparia uma casa ampla num bairro agradável, perto do colégio das crianças, com ônibus passando na porta. Haveria um parque perto onde, nos fins de semana, levaria os filhos para jogar bola, brincar e andar de bicicleta. Poderia exercitar-se também, caminhando de 45 a 60 minutos por dia, para não perder a forma.
Ana, a esposa, estava feliz. Deixaria em Santo Ângelo os familiares e, nos primeiros dias, reclamaria um pouco mas, na medida em que conhecesse os vizinhos, se acostumaria com a distância. Ocupar-se-ia com a decoração da casa, que lhe pareceria enorme com os poucos móveis que trariam na mudança. Compraria tudo novo. A promoção do marido enchia-a de orgulho. Logo esqueceria os primeiros anos do casamento, com tantas dificuldades e sacrifícios.
Todos esses pensamentos passavam pela cabeça de Ivan enquanto seu carro deslizava na BR 116, já em Canoas, quase chegando em Porto Alegre, naquela manhã de inverno. Estava úmido, chovia e os vidros do carro, embaçados, dificultavam a visão, fazendo-o dirigir com cuidado.
Apesar do dia feio, sentia-se feliz. Tudo corria as mil maravilhas e nada havia que pudesse deixá-lo de mal humor. Nem mesmo o trânsito complicado que, com a chuva, tornava-se caótico. Diziam seus amigos que o motorista da capital era apressado, nervoso e mal educado. Notara, em outras viagens à capital que, mal abria o sinal, os motoristas logo atrás já buzinavam nervosamente, mas achava isso natural. Era uma cidade agitada, cheia de pessoas responsáveis, homens de negócio, trabalhadores, todos com pressa e cheios de afazeres. Por isso eram apressados. Não achava essa atitude um sinal de falta de educação.
Sentia-se, ele sim, não adaptado aquela azáfama toda, sendo ele o estranho, com sua calma ao dirigir, que atrapalhava aos demais.
Estava absorto nesses pensamentos quando percebeu que o carro a sua frente estava com a porta do motorista mal fechada e dela pendia o cinto de segurança que arrastava-se no asfalto molhado. Manteve-se na faixa de rolamento da esquerda e aproximou-se, esperando uma chance de avisar ao motorista. Já na Avenida dos Estados, um semáforo passou para o amarelo, sinal de que teria que parar em seguida. Era a oportunidade que esperava.
Não conseguiu ficar ao lado do carro e esperou que o fluxo de tráfego reiniciasse para tentar se fazer notar pelo descuidado motorista. Assim um cidadão consciente devia se portar. Alertar aos desavisados e perceber, no olhar agradecido do outro, o reconhecimento. Afinal estava em Porto Alegre, aquela cidade que iria aprender a amar como ao seu próprio torrão natal.
O sinal abriu. O carro a sua frente arrancou. Emparelhou com o veículo à sua direita, diminuiu a velocidade, baixou o vidro e buzinou. O sujeito ao lado não estava nem aí. Buzinou de novo. O motorista olhou sério para ele sem entender. Tentou fazer-se compreender fazendo sinais. Não podia ficar muito tempo retendo o tráfego. Os motoristas atrás de si começavam a buzinar, impacientes, quando o vidro do carro ao seu lado começou a baixar. Aumentando a velocidade gritou: “Porta aberta!” e distanciou-se. Tentou ver pelo retrovisor se o outro entendera mas o vidro embaçado impediu-o. Voltou aos seus pensamentos.
Seria feliz em Porto Alegre. Via, no seu gesto, a atitude que se podia esperar de alguém integrado ao seu meio, de alguém em harmonia com a grande cidade.
O trânsito continuava lento e, na sinaleira seguinte, teve que parar novamente. Com o canto do olho percebeu que um carro parara ao seu lado. Virou-se e viu que o motorista a quem avisara a poucos instantes fazia-lhe sinais. Abriu o vidro com um sorriso nos lábios já escolhendo as palavras que diria em resposta ao agradecimento.
Um rosto irado olhava-o e o berro pegou-o de surpresa.
“BOCA ABERTA é a mãe filho da puta!”
Aturdido Ivan fitava-o sem entender. Ficou parado, vendo-o arrancar cantando pneus, sem perceber que o sinal já abrira. Atrás dele, as buzinas soavam ensurdecedoras. E no meio do barulho todo conseguiu ouvir, atônito:
“Sai da frente panaca!”; “Tá esperando o quê boiola?”; “Te mexe ô colono!”
A cidade grande lhe dava as boas vindas.


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