quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Mistério

Enquanto arrumava as tralhas no carro, Nestor pensava na farra da noite anterior. Que festão! A dor de cabeça que sentia era uma triste lembrança de uma noite tão animada.
O Bira havia falado daquela boate, das mulheres maravilhosas... e não exagerara.
O problema é que já chegara lá meio bêbado. As coisas pareciam meio confusas. Não conseguia se lembrar de metade do que acontecera. Em sua cabeça havia um torvelinho de imagens. Lembrava-se que dançara muito e que saíra da boate acompanhado. Dera carona para algumas gurias, uma delas muito louca, que falava alto, quase gritando. Parecia estar mais embriagada que ele. Lembrava-se que a bolsa dela ficara sobre o banco traseiro e que, antes de arrancar o carro, atirara-a pela janela. Nem percebeu se a camarada a apanhara. Tudo que ele queria era voltar para o hotel. No fogo em que estava, melhor era parar com a farra por ali.
Não se lembrava da chegada no hotel. Só deu por si na manhã seguinte, deitado, ainda vestido. Ainda bem que tivera o bom senso de deixar toda a roupa para lavar no hotel. Levá-las para casa teria sido o mesmo que assinar uma confissão. O perfume forte de sua acompanhante da véspera e as manchas de batons diziam tudo.
A voz da esposa tirou-o de seus pensamentos.
“Pegaste tua carteirinha, bem?”
Abriu o porta documentos e conferiu. Estava tudo ali. Identidade, habilitação, carteirinha do clube. Fez sinal de positivo para a esposa, sentou-se no carro e baixou o encosto do banco do carona para as crianças entrarem ruidosamente.
Ligou o rádio mas logo desistiu. As crianças provavelmente iriam cantar o primeiro pagode que tocasse e o que ele menos queria agora era ouvir suas vozes esganiçadas e desafinadas. Tudo que ele queria era aproveitar aquela tarde de Sábado para puxar um ronco numa rede, sob as árvores, enquanto a mulher e as crianças estivessem na piscina do clube. E sonhar com aquela morena linda que lhe escapara na festa porque ambos estavam bêbados demais.
Levou um susto quando a mulher gritou:
“Esqueceste da mãe?”
Pediu desculpas à mulher e entrou no primeiro retorno para voltar e pegar a sogra. Esquecera completamente que haviam combinado levá-la ao clube.
A velha já esperava toda emperiquitada, de chapéu, sacola e com uma cadeira de praia a tiracolo.
“Mais uma tralha para acomodar lá atrás” – pensou, sem ousar exprimir o pensamento. Quando estavam as duas juntas ele nunca tinha razão. Suspirando, desceu do carro, abriu o porta-malas e atirou a cadeira da sogra de qualquer jeito. “Tomara que quebre!” – desejou em voz baixa.
Sogra embarcada, todos acomodados, retomaram a estrada. As crianças fazendo algazarra, as mulheres fofocando, a dor de cabeça começou a sumir e o Nestor foi, lentamente, voltando a realidade e esquecendo a boêmia.
“Olha o cachorro!”
Já tinha visto o animal. O grito da mulher assustou-o levando-o a brecar bruscamente. Foi uma zorra. As crianças gritaram, a sogra, sem o cinto de segurança, bateu com força no encosto de seu assento, fazendo-o soltar um palavrão. Do porta malas veio um barulhão. “Pronto! Virou toda aquela merda, desarrumou tudo!”, pensou, sentindo que algo deslizou sob seu banco, batendo em seu pé. Olhou para baixo e viu, entre seus pés, uma sandália feminina.
Imediatamente, lembrou-se. A sua amnésia etílica fizera-o esquecer mas, naquele momento alguma coisa veio-lhe a mente. Uma perna bem torneada, com uma roliça coxa a mostra, saindo de seu carro. E um pé descalço. A garota embriagada deixara a sandália dentro de seu carro. Ficara sob o banco e, com a freada, surgia agora como evidencia de seu crime. Rapidamente, empurrou, com o pé, a sandália para debaixo de seu banco, olhando de esguelha para a esposa que, aparentemente, não notara nada.
O carro entrou na estrada de chão que os levaria a sede campestre. Muita poeira, muitos veículos seguindo na mesma direção. Ao aproximar-se da ponte de madeira, já na área do clube, veio-lhe a idéia.
Quando estavam sobre a ponte, resolveu por a idéia em prática.
“Olhem como o riacho está cheio!” – disse, apontando para a direita, onde o riacho alargava-se, espraiando-se sobre um lajeado. Todos olharam naquela direção. Num relance,
esticou o braço esquerdo, pegou o calçado que mal aparecia entre suas pernas e atirou-o com força pela janela. Ouviu o barulho da sandália quando bateu na água. Olhou para a direita. Todos estavam voltados para a prainha onde inúmeros banhistas se divertiam, naquela bela tarde de verão.
Suspirou aliviado. Ninguém notou nada.
Entrou no estacionamento assobiando. Feliz, estacionou sob uma pequena árvore. A maior parte do carro estava no sol mas isso não importava. À tardinha, quando saíssem do clube, o sol já teria se posto e o carro estaria fresquinho.
A esposa agarrou as crianças pelas mãos e encaminhou-se para a portaria. Nestor abriu o porta-malas, pegou o que conseguiu e virou-se para a sogra para entregar-lhe a cadeira de praia e sua sacola. A sogra não estava ali. Olhou para a portaria do clube e viu apenas sua mulher e os filhos. Virou-se para o carro e viu a sogra ainda lá dentro, como a procurar algo.
“Que foi dona Francisca? Não vai descer?” – perguntou, enfiando a cabeça pela porta do carro entreaberta.
“Não estou achando minhas sandálias, meu filho! Tirei porque estavam apertadas e um dos pés sumiu!”
Mulher e filhos vieram ajudar. Nestor também. Meteu-se entre os bancos, fingindo perplexidade.
“Não é possível! A senhora tem certeza?”
A pobre senhora passou a tarde mancando, com um pé descalço enquanto o Nestor, malvado, gozava:
“Aqui tá fundo, aqui tá raso! Aqui tá fundo, aqui tá raso!” , no mesmo ritmo do andar claudicante da sogra.
E o mistério da sandália desaparecida nunca foi esclarecido.

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