quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Chá das Cinco

Décio consultou o roteiro daquela Sexta-feira. Já passava das 3 da tarde e tirara poucos pedidos. Estava desanimado naquele dia. Sentia-se cansado. A semana tinha sido árdua. Não era mole trabalhar a pé o centro de Porto Alegre. Tinha que deixar o carro na Coronel Vicente, pegar a Voluntários da Pátria e ir passando o “pente fino” nos pequenos varejos da área. Encerraria o dia no Mercado Público onde, após fechar o último pedido, faria algumas compras e retornaria ao estacionamento onde deixara o carro e, só então, tomaria o rumo de casa.
O dia estava quente. A pasta de trabalho parecia-lhe mais pesada do que em outros dias. Suava em bicas.
“Droga de calor! O verão é muito bom pra quem pode ir pro litoral, gozar uma praia. Pra quem é pobre, ainda mais vendedor como eu, que tem que ralar nesse calor infernal de Porto Alegre, é uma merda!”
Como seria bom se pudesse trabalhar no litoral. Não entendia porque a praia tinha que ser atendida pelo vendedor de Caxias. Só na cabeça daquele gerente idiota. Era muito mais fácil para alguém que residisse na capital. Mas como convencer o velho? Tinha até medo de falar com ele. O velho o tratava com descaso. Fazia ouvidos surdos às suas reclamações ou sugestões. Dava atenção apenas para os puxa-sacos que viviam a sua volta, acendendo-lhe os charutos, servindo-lhe cafezinhos.
“Careca filho da puta!” – pensou rancoroso.
Foi um alívio entrar naquele armazém. Estava fresquinho lá dentro. Era um prédio antigo e o estabelecimento ficava no térreo e do lado da sombra. Ia tomar alguma coisa gelada e procurar o comprador. Encostou-se no balcão e, ao debruçar-se para colocar a pasta no chão, sentiu a primeira cólica.
“Devem ser gazes. Comi demais no almoço!”
Olhou para os lados e, cautelosamente, para não fazer barulho, liberou a flatulência. Sentiu-se aliviado. Puxou um cigarro e, rapidamente, acendeu o fósforo para evitar que o mau-cheiro se espalhasse à sua volta.
Depois de aliviar a sede, dirigiu-se ao comprador que estava sobre uma escada, arrumando uns enlatados nas prateleiras superiores.
Após os cumprimentos, falaram um pouco sobre o comércio, o calor e, de onde estava mesmo, o comprador passou a ditar-lhe as faltas enquanto ele anotava no talão de pedidos.
Foi quando sentiu a dorzinha novamente. E agora? Não tinha coragem de, na frente do cliente, liberar o flato que, inconvenientemente, empestaria o ambiente. E o que é pior, a dor estava aumentando.
Nem forçou a venda. Contentou-se com a solicitação do comerciante, sem fazer sugestões ou tentativas de aumentar o valor do pedido. Foi com alívio que estendeu-lhe o talão para que assinasse. Fechou a pasta e perguntou onde ficava o banheiro.
“Lá no fundo, a direita, no alto da escada!”
Agradeceu a informação, despediu-se com rápido aceno e, disfarçando a agonia que sentia, dirigiu-se para os fundos do armazém, tentando aparentar calma. A cólica estava insuportável e, tão logo entrou no depósito, relaxou o esfíncter, confiando que, desafogando os gazes, a dor amenizaria. Com horror, percebeu que alguma coisa morna lhe descia perna abaixo. Subiu correndo a escada e trancou-se no banheiro. Largou a pasta no piso molhado e tirou a calça para examinar o estrago. Uma listra marrom contrastava com a claridade do tecido, denunciando o crime. Procurou papel higiênico e, desolado, descobriu que não havia. Abriu a pasta, pegou o talão de relatório e passou a usá-lo, abençoando-se por não tê-lo esquecido no carro, como, costumeiramente, fazia.
A cueca foi para o lixo. Umedeceu o papel e esfregou-o na calça, virada do avesso, tentando minimizar-lhe a aparência imunda. De pouco adiantou. O tecido, molhado, realçava ainda mais a sujeira. E o cheiro? Era insuportável como se tivesse caído dentro de uma fossa lotada de excrementos.
Após a inútil higiene, vestiu-se e tentou examinar sua triste situação com calma. O jeito era enfrentar. Não adiantava tentar esconder. A mancha marrom que se alongava desde o fundo da calça, descendo pela perna até a bainha, era indisfarçável e todos perceberiam.
Respirando fundo, desceu a escada, baixou a cabeça e dirigiu-se a rua, rezando para não ser visto pelo cliente.
Já na calçada, colocou a pasta atrás, segurando com ambas as mãos pela alça, mantendo-a, desconfortavelmente, na altura das nádegas, na vã esperança de esconder sua desdita.
Caminhava apressadamente, de olhos grudados no chão, indiferente às risadinhas e comentários que, apesar do burburinho do centro, ouvia.
Com alívio chegou ao estacionamento. Entrou no carro, deu partida e, ao passar no portão, gritou ao encarregado:
“Amanhã eu acerto. Estou com pressa!”
Este acenou-lhe positivamente de volta , com o dedo polegar em riste.
Pegou a Avenida Farrapos e acelerou o fusquinha em direção ao Navegantes.
Estacionou de qualquer jeito em frente ao prédio onde residia, atravessou o pátio e disparou escada acima torcendo para não cruzar com nenhum vizinho.
Bateu na porta com ansiedade. Tocou a campainha. Os poucos instantes que a mulher demorou para abrir a porta pareceram-lhe uma eternidade.
“Ôi bem! Chegou cedo!”
Empurrando a mulher, foi entrando em casa gritando:
“Sai da frente que eu tou todo cagado!”
Uma dúzia de rostos femininos olhavam-no com espanto. Só então lembrou-se que, às sextas feiras, a esposa reunia amigas para um “chá das cinco” e para mostrar-lhes os lançamentos da linha de produtos de beleza que representava.
Envergonhado, trancou-se no banheiro até o final da tarde. Só saiu quando as amigas da mulher , às gargalhadas, se despediram.

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