quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Cães de Guarda

Ninguém entendia porque a Léa suportava a bebedeira do Rogério. Mulher bonita, alta e com todos os atributos em cima, cobiçada por quantos lhe punham os olhos, no dia em que desse um basta nos excessos do marido e o dispensasse, certamente muitos braços a acolheriam para consolá-la (?).
No entanto, com uma santa resignação, ela aceitava os porres do consorte e, para espanto de todos, parecia não se afetar com o fato de, diariamente, vê-lo chegar trôpego.
A Rejane, sua vizinha e confidente, bem que tentou entender. Todos os dias, a tardinha, encontravam-se para tomar chimarrão e, entre um assunto e outro, como quem não quer nada, comentava:
“E o Rogério? Continua a gostar de uma birita?”
Ao que a amiga, disfarçando a tristeza, respondia:
“O coitado é tão trabalhador. A cervejinha é uma válvula de escape para o stress. Eu não me importo!”
Numa coisa estava certa. O Rogério adorava o trabalho. Vendedor desde que se conhecia por gente, exercia sua atividade com uma paixão fervorosa. Tinha em suas mãos meia dúzia de representações que, ao longo dos anos, desenvolveu e fez crescer junto a seus clientes e que lhe rendiam, senão comissões milionárias, pelo menos de excelente nível, que lhe permitiam usufruir de um padrão de vida invejável.
Além da casa num bairro de classe média alta, construíra uma outra na praia, muito confortável e bonita. Trocava de carro a cada dois anos e, no último dia das mães, presenteara a Léa com um Corsa zerinho.
Além de tudo isso o Rogério era de uma fidelidade exemplar. Adorava a esposa e, apesar das chances que as constantes viagens de negócios lhe proporcionavam, não riscava fósforo fora da caixa.
Pois é! Por essas e outras é que a pobre Léa conformava-se. E não abria a boca quando o marido ao chegar em casa, largava o carro na garagem, punha uma bermuda ou abrigo e dizia:
“Vou jogar uma sinuca no Chico. Enquanto isso, prepara uma jantinha pra nós, bem?”
E lá ia para o bar do Chico. A sinuca era um pretexto. O que o Rogério queria mesmo era entornar umas e outras.
Pois bem!
Para evitar visitas de amigos do alheio, Rogério comprara, meses atrás, dois filhotes de doberman que, a esta altura, estavam crescidos e fortes. Eram dois belos animais, bem criados e que, apesar de imporem respeito pelo tamanho e aspecto feroz, transformavam-se em dóceis bichinhos quando o dono chegava em casa. Por ordem do marido, Léa os mantinha presos mas os soltava ao anoitecer, sempre depois que o Rogério saia para o bar. Quando voltava, já turbinado, Rogério abria o portão e berrava com voz pastosa:
“E aí cachorrada?” E se ajoelhava, deixando que os cães dessem vazão a sua alegria, lambendo-o, fingindo morde-lo e rosnando com falsa ferocidade. Rogério lutava de mentirinha com seus cães, rolava na grama... era uma festa.
Pois bem!
Um dia, não se sabe se tomado por dor na consciência, de tanto Léa pedir em vão que abandonasse aquele vício que lhes toldava a felicidade, ou talvez motivado pela alegria que a gravidez da mulher lhe proporcionou, Rogério tomou uma decisão:
“A partir de hoje não bebo mais!” E disse isso com firmeza, socando a mesa com tal violência que derrubou um copo de suco na toalha limpinha. A esposa abraçou-o feliz, não acreditando no que ouvia.
E quando o marido saiu para o trabalho começou diligentemente a fazer planos para recebe-lo, logo mais à noite, de uma forma especial. Buscou nos livros de receita que a mãe lhe dera, um prato leve e diferente, algo não muito pesado. Afinal, estavam, a partir daquele dia, iniciando uma nova etapa em suas vidas. E a noite teria que ser coroada com muito amor. E como seria maravilhoso. Há quanto tempo não fazia sexo sem sentir o hálito nauseante do marido, sempre fedido a álcool.
Passava das 7 quando o telefone tocou. Já apreensiva com a demora do marido, Léa assustou-se, temendo más notícias.
“Oi bem!” , ouviu aliviada ao notar que a voz do marido estava normal, sinal de que, pelo menos até aquele momento, Rogério permanecia firme na abstinência.
“Bati o carro e vou me atrasar um pouco. Não foi nada grave. Só um pequeno amassado, mas já estou resolvendo tudo. Logo, logo estarei em casa tá? Como passou o dia?”
Após desligar Léa pareceu estar nas nuvens. Há quanto tempo ele não lhe falava assim, de forma tão cortês, demonstrando interesse pelo seu dia?
“Abençoada gravidez!” Porque esperara tanto? Aquela bobagem da mãe e da sogra a aconselhá-la a só querer filhos quando tivessem uma situação financeira sólida. Seguira seus conselhos e no que deu? O casamento entrara numa mesmice que por pouco não tivera pior final. Claro. Era por isso que o marido bebia.
“Abençoada gravidez!” , repetiu.
Foi aos fundos da casa, soltou os cães e voltou à sala, ligando a televisão. Não demorou a ouvir o carro do marido e o barulho do portão. Olhou-se no espelho, conferiu a decoração e a arrumação da mesa e dirigia-se a porta quando começou a confusão.
Os cachorros latiam, pareciam estar atacando alguém, o marido gritava, ouviu um barulho de passos apressados, o som de um corpo caindo.
Abriu a porta. O marido estava no chão, tentando defender-se com a pasta, abocanhada por um dos animais, enquanto o outro arrancava-lhe a perna da calça, já em frangalhos.
Berrou com os cães, atirou um vaso em um deles. Os dois afastaram-se enquanto o marido arrastava-se para dentro de casa.
Estava um trapo. As roupas rasgadas, uma das mãos sangrando, a pasta inutilizada pelas mandíbulas fortes dos bichos.
Depois do banho, de roupas limpas, Rogério ainda tremia.
“Desculpe amor mas preciso de um trago. Eu lhe prometi mas, por favor, entenda!”
Ela entendeu. O coitado precisava se acalmar.
Rogério viu que os cães estavam nos fundos da casa. Apesar da proximidade do bar, correu até o carro, saiu de ré e acenando para a mulher.
“Já volto! Só vou tomar uma dose e papear um pouco!”
Lá pelas 11 a Léa ouviu o carro chegar. Olhou pela janela e viu o marido descer do carro, bêbado como sempre. E, como de costume, os cães saltavam alegremente à sua volta, como se nada houvesse ocorrido. Rogério atirava-se na grama, gritando seus nomes com a voz enrolada, tentava levantar-se, não se agüentando nas pernas.
Léa entendeu tudo. Claro!
Como antes não estava bêbado, os cães não o reconheceram.

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